Blog Andando por Aí

Apenas um dia para a árvore?

 

Amanhecer numa floresta de araucárias. Estância Tio Tonho, S. J. dos Ausentes - RS

Vejo muitos tipos de comemorações ao Dia da Árvore, neste 21 de setembro, quando as pessoas postam fotos de grandes árvores, sendo algumas floridas, outras exuberantes apenas no tamanho e forma, outros exibem troncos cortados de velhas árvores lamentando o seu fim e fazendo alusões à sua importância, outros ainda esbanjam beleza mostrando florestas intactas de um verde eletrizante de muitos matizes. Uns colocam mensagens de otimismo, outros de pessimismo. Uns exaltam a árvore como produtora de oxigênio e sombra, outros exultam seu papel no frescor e beleza que emprestam as ruas e parques das cidades e áreas rurais.

A minha percepção de uma, de centenas ou de milhares de árvores, é um pouco diferente. Vejo uma árvore, independente da espécie a que pertença, como um organismo que conseguiu a façanha de germinar e se estabelecer entre outras tantas, fato que parece pouco, mas não o é. Uma semente lançada ao vento ou carregada no estômago de uma ave, pode tomar muitos caminhos e mais de 90% delas se perdem no ambiente, sendo queimadas, consumidas pela fauna ou enterradas em pântanos onde apodrecem antes da germinação.

Uma parcela muito, mas muito pequena das sementes consegue germinar e, destas, outra parcela muito reduzida chega a fase adulta com o porte e feições de uma árvore. O que vejo nos nossos parques, jardins e áreas de terrenos ainda baldios, é um quadro com sobreviventes de uma época em que os espaços são priorizados para construção de casas, ruas, praças, lavouras e hortas, entre outros. As poucas árvores que por aí se mostram são mesmo aquelas que mais se adaptaram aos pequenos espaços que foram deixados por nós, mostrando-nos que a flora é persistente, teimosa e qualquer fresta entre muros, ou na margem de rodovias serve para que sementes germinem e cumpram seu papel.

Qual o motivo de se comemorar apenas o dia da árvore, e não do arbusto, da erva pequena, da trepadeira, do cipó, da orquídea, da samambaia ou do musgo? Será que é apenas pela sua aparência ou poder de sedução?  Ou será que é por que ao ser cortada e removida cause mais impacto visual do que as pequenas outras plantas que viviam sobre ela, que fenecem igualmente? Será o poder do grande, do visível, do barulho quando cai? Não sei. Sou cético com comemorações de datas para isso ou aquilo. Acho que se gostamos de uma coisa, ela tem que ser comemorada e respeitada todos os dias, não apenas em um dos 365. Parece-me uma tentativa nossa de aplacarmos nossa consciência para as coisas que fazemos.

Uma árvore é um ser complexo que abriga inúmeras outras formas de vida, sejam outras plantas, fungos, animais e líquens e quando é referenciada isto não é visto e nem lembrado, fazendo parecer que na natureza o importante é apenas ela, o que me parece uma grande injustiça. Deveríamos saudar a natureza e toda sua complexidade nos 365 dias do ano e não apenas neste dia 21 de setembro, já que para termos uma árvore, tem que haver vento, mamangava, chuva, fungo, morcego, sabiá, sol, minhoca, solo, cutia, lua, lobo-guará, abelha....

O Lobo-guará

Logomarca do programa educativo denominado Projeto Loboguará

A paixão de muitos anos que nutro pelos mamíferos, levou-me a estudar mais a fundo o universo destes organismos extraordinários que habitam os mais diferentes ambientes do nosso planeta, passando pelas geladas regiões dos polos aos mais escaldantes desertos. Ser um mamífero pressupõe alguns atributos evolutivos únicos e interessantes, como o desenvolvimento dos pelos para o revestimento e proteção do corpo, glândulas sudoríparas na pele, manutenção constante da temperatura interna do corpo e, principalmente, o desenvolvimento de glândulas mamárias para nutrir os filhotes nos primeiros tempos de suas vidas.

Tem mamíferos de todos os tipos e tamanhos, indo da gigante baleia azul e elefantes – os dois maiores mamíferos existentes hoje, aos pequenos morcegos, alguns roedores e marsupiais que não pesam mais do que alguns gramas. Desenvolveram uma diversidade considerável de formas e hábitos que encanta e desafia a lógica da vida. Durante meus estudos sobre roedores subterrâneos – os tuco-tucos, na Estação Ecológica do Taim, descobri e descrevi uma nova espécie deste curioso roedor que habita as primeiras linhas de dunas do nosso litoral.  Trata-se do tuco-tuco branco, um roedor exclusivamente gaúcho que é pouco visto devido ao seu hábito de viver em tocas quase a totalidade de sua vida, outra curiosidade a respeito do comportamento destes pequenos roedores.

Outro mamífero que tem minha admiração e respeito é o Lobo-guará, que me levou a batizar um projeto de Educação Ambiental, criado lá em 1992, com o seu nome. Os motivos que me impulsionaram a colocar o nome deste belo animal no projeto, foram basicamente três: o lobo-guará é o maior canídeo selvagem nativo da América do Sul, sendo pouco conhecido fora da zona do Cerrado do Brasil Central, seu ambiente principal; ele está incluído na lista vermelha dos animais ameaçados de extinção; finamente, este magnífico animal ainda existe aqui pelo sul do Brasil, nas regiões dos campos de altitude e no Pampa. Esta foi a forma que encontrei de homenagear esta espécie rara, por aqui, e que durante todos estes anos ficou na cabeça de milhares de alunos que por aqui passaram e acabaram por conhecer melhor esta espécie de mamífero brasileiro, tão icônico, perseguido, caçado e mal conhecido.

Recentemente o governo federal resolveu criar a nota de R$ 200,00 estampando a figura do nosso lobo-guará, uma justa homenagem aquele que tão bem representa a fauna das áreas de campos e savanas do nosso país. Isto pode trazer mais luz e mais conhecimento a nossa fauna, aumentando assim o respeito pelo que temos em nosso solo, e evitando que a extinção se proceda, uma vez que ela é irreversível. Sinto-me, juntamente com todos que nestes anos todos trabalharam e continuam trabalhando no Projeto Loboguará, homenageados e estimulados a continuar um trabalho educativo que não deve parar, uma vez que o conhecimento leva a consciência e ambos conduzem ao cuidado e preservação. Não se preserva o que não se conhece. Ainda hei de me encontrar com um lobo-guará nas minhas campereadas pelo Nordeste do nosso Rio Grande do Sul.

Viajando no tempo

Campos de Altitude e cânion da Coxilha, S. J. dos Ausentes - RS

A história do passado do homem sobre o nosso planeta é relativamente bem conhecida, rastreada que foi e continua sendo, por arqueólogos que encontram indícios de nosso comportamento, evolução tecnológica e expansão sobre territórios novos e inexplorados. Artefatos de pedra lascada ou polida, cerâmicas, metais e restos de esqueletos nos contam de uma trajetória conhecida de cerca de 10 a 12 mil anos atrás quando alguns grupos humanos de nômades caçadores/coletores, começaram a domesticar algumas plantas e animais e adotaram progressivamente o modo de vida sedentário, criando-se assim os embriões das primeiras vilas e posteriormente cidades.

A chave para esta mudança de modo de vida foi a capacidade de produzir uma quantidade de alimentos que fosse superior ao consumo diário. Assim nasceu a agricultura, que exigiu do homem a habilidade para selecionar plantas com sementes grandes e nutritivas que pudessem ser plantadas, colhidas e armazenadas para consumo futuro, como o foram inicialmente o trigo, cevada e o arroz.

Também os animais mais dóceis e com características importantes que pudessem ser exploradas pelo homem, foram lentamente domesticados, como o gado bovino, os cavalos, cães, porcos, ovelhas e galinhas. Isto foi garantindo proteína animal, gordura, transporte e fibras para as populações que, com estes recursos adicionais, aumentaram rapidamente em número criando cidades e, posteriormente, impérios. Mas um dos preços desta aproximação maior com os animais foi a nossa contaminação com alguns de seus vírus e bactérias que nos trouxeram doenças que até hoje molestam a humanidade, como a gripe, o sarampo e tantas outras. A formação de núcleos urbanos com milhares de pessoas em pequenos espaços, contribuiu para a disseminação de epidemias devastadoras que surgiam de tempos em tempos.

O excedente de alimentos criou a possibilidade de alimentar um grupo de pessoas que não trabalhavam diretamente no campo, mas nas vilas e cidades. Assim se criaram os especialistas, homens e mulheres que se dedicavam a confecção de armas, cerâmicas, vestuários, administração pública, etc... Surgiu assim a metalurgia, a carpintaria e todas as outras especialidades de artífices que ajudaram a sustentar as cidades, as necessidades de bem viver e de se defender de invasões ou permitir conquista de novos territórios pela força de novas armas.

Pulando no tempo, hoje temos bem claro isso quando olhamos uma cidade e uma zona de produção no campo, ou na colônia. O modelo é o mesmo, mantendo as proporções que as novas tecnologias trouxeram para ampliar de forma considerável a produção de alimentos, fazendo com que a maioria da população humana seja de especialistas, e não de produtores. Os espaços mais propícios a agricultura forma amplamente dominados e outros utilizados para expansão urbana e de estradas, pouco sobrando daqueles lugares ainda selvagens e que remontam ao início de nossa história de caçadores/coletores.

Fascino-me com estes poucos, raros e inóspitos lugares primitivos como uma necessidade de ver e sentir como era o nosso ambiente antes da revolução agrícola. Não me perguntem o porquê, apenas sinto que necessito ver e sentir estes ambientes. Esta é a mola que me impulsiona para ir, ver, fotografar e escrever como se eu me visse como um viajante no tempo que observasse a paisagem à frente sem que nela ainda sequer tivéssemos pisado, morado, arado ou criado qualquer animal para consumo ou tração. É um exercício que faço com muito prazer e que me permite entender cada vez mais a ocupação humana no planeta. Necessitamos, assim como no início de tudo, de muita comida vegetal e animal e, para isso, aperfeiçoamos cada vez mais a pecuária e a agricultura para alimentar um número cada vez maior de especialistas que vivem nas megacidades que criamos. Qual será o limite? Quem viver, saberá.       

O sabor secular de um queijo

 

Queijaria do Rincão Comprido, Família Lopes - S. J. dos Ausentes - RS

Queijo é uma iguaria que concentra o sabor do leite e seus fermentos de uma forma única, quando muitos litros se transformam em uma massa branca que será trabalhada, espremida em formas e finalmente posta a secar, aguardando a alquimia mágica da maturação. Depois de um período de alguns meses, ele estará pronto para o consumo, seja sob a forma de generosas fatias em um café da tarde, de pequenos pedaços acompanhando um bom vinho ou em uma frigideira se derretendo e se misturando com ovos, salsa, sal e pimenta. Não importa a forma, importa é consumir cada pedaço como se fosse o último.

Conheci algumas queijarias na região dos campos de altitude, em São José dos Ausentes, um dos locais de origem do famoso Queijo Serrano. Na queijaria do Rincão Comprido aprendi, com os ensinamentos da dona Maria e de sua filha Edinaira, que o queijo, assim como o vinho ou o azeite de oliva, é fruto de um conjunto de fatores ambientais conhecidos como terroir, que envolve a pastagem, o solo, o clima do local, a raça e a alimentação do gado de corte que produzirá a matéria prima – o leite. Nesta propriedade há vacas rústicas de raças resistentes ao rigor do clima serrano de altitude e a alimentação é apenas de pastagem natural, com um mínimo de suplementação naqueles períodos mais críticos do inverno.

Estes fatores, combinados com a tradição de mais de duzentos anos que a família Lopes produz estes queijos, imprimiram uma identidade ao produto, sendo premiado em feiras e concursos. Este queijo é trabalhado com muito carinho pelas duas mulheres da família, que são as responsáveis tanto pela ordenha, que é sempre manual, como pela confecção, cuidados na maturação e venda do produto. Ver a queijaria (foto) com as prateleiras repletas de queijos maturando é animador, e desperta uma salivação de um gosto e textura que lembram uma carne macia. Com a mastigação de um generoso pedaço, que se parte na boca sem esforço, este queijo libera um conjunto de aromas e outros quimismos que estimulam todas as papilas gustativas, num frenesi de sabores que são inigualáveis, indescritíveis. A maciez, o sabor e a textura da primeira mordida, afasta a necessidade de qualquer complemento, fazendo com que ele seja dissolvido, saboreado e engolido com um vagar de quem não quer abandonar aquele prazer. Um vinho ou um pão, com alguma geleia ajudam, mas o galã mesmo, é o queijo.

Dona Maria e a Edinaira são duas produtoras daquelas que se vê pouco, que resistem ao tempo e mantém a mesma receita de seus ancestrais, aprimorando apenas o manejo do gado e melhorando sempre a pastagem nativa para que se mantenha o sabor único deste maravilhoso produto, o queijo premiado do Rincão Comprido. As frinchas do galpão deixam entrar réstias de luz e sopros do frio ar serrano, temperando e embalando a lenta maturação das peças de cor creme e formatos retangulares que descansam nas prateleiras feitas de tábuas de araucária. Preciosidades que combinam com o asseio, dedicação e organização da queijaria. Parabéns gurias.

O tom e o som da manhã

Amanhcer na Várzea da Branca, na Estância Tio Tonho - São José dos Ausentes.

Gosto de acordar antes do sol e ficar observando as mudanças de cores que se operam na paisagem e a sequência de sons novos que surgem com a luz. A beleza do momento se engrandece muito quando uma névoa surge no fim da madrugada e vai se imiscuindo pelos baixios e várzeas contrastando com o negro dos pinheiros que bordam o capão de mata, indicando para o campo o seu limite. O frio, que é companheiro das madrugadas, exige disposição e mate quente para trocar as cobertas quentes pela aragem do amanhecer, mas o espetáculo que se descortina a frente, na Várzea da Branca, aqui na Estância Tio Tonho em São José dos Ausentes, compensa qualquer sacrifício.

Vejo os matizes de branco da névoa que se arrasta com pressa, já que sabe que assim que o sol surgir, será extinta pelo calor. Ela se espalha o mais que pode e tem, nestas poucas horas do início da manhã, o seu reinado com seu manto branco e úmido, molhando tudo pelo seu andar silencioso. Alheias a este movimento branco e efêmero, as araucárias observam quietas a este desfile silencioso, já sabendo que o final deste espetáculo vai se dar com os primeiros sinais do calor do sol, que ainda está por surgir no campo.

Nas matas, campos, taipas e rochas expostas, há uma corrida para que os líquens, musgos, bromélias e outras plantas e pequenos animais aproveitam este nevoeiro para dele retirar um pouco de umidade e aplacara o rigor da seca desta estação. Todos bebem do generoso manto branco e, quando ele sumir, ficará retido pelos organismos em forma de gota do precioso líquido que o céu insiste em não enviar. O cheiro da manhã é formado por um conjunto de odores úmidos e adocicados que lembram terra molhada com leves traços de mel trazido pelas poucas flores da estação.

O silêncio da hora que antecede o sol é muito especial, só quebrado por algumas aves que já identificaram o início do dia. Seriemas, com seus gritos agudos sinalizam seus dormitórios e territórios; gaviões carrapateiros e chimangos já iniciam voos planados emitindo seus gritos característicos alertando as aves menores da presença dos predadores; o gibão de couro, a corruíra e a maria-preta já se posicionam para iniciarem a caça aos insetos, seu alimento preferido; bandos de corucacas já saem dos dormitórios e voam em formação na direção dos campos úmidos nas várzeas e margens dos arroios.

Sem vento, as árvores não se movem e apenas aguardam o sol para iniciarem sua fotossíntese, sintetizando assim o seu precioso alimento que irá repousar em algum fruto, semente ou folhas que serão consumidos por algum animal. No repouso da noite escura a mata e o campo são palco de alguma atividade estabelecida pela fauna do local. Os graxains circulam atrás de roedores e perdizes, os tatus escavam cupins e formigueiros, gambás rondam pelas árvores atrás de aves dorminhocas, corujas e curiangos caçam em silêncio com seus olhos especialmente desenvolvidos para enxergarem a noite. Todo este movimento cessa nestes poucos momentos que antecedem o surgimento do sol, fazendo com que estes animais notívagos se recolham a seus esconderijos cedendo lugar a fauna diurna. Finalmente o sol surge, espanta a nevoa e um novo dia começa. Dirijo-me ao galpão da Estância atrás de um delicioso camargo, uma bebida nativa de sabor inigualável formada pela noite – o café preto, e pela névoa branca do novo dia – o leite fresco. Assim o camargo se assemelha ao novo dia e me inspira para andar, ver, fotografar e escrever.

Cinza ou chama?

O Monte Negro ao fundo, o verdadeiro Topo do Rio Grande. Logo estarei de volta....

Escrevo esta crônica quando já se passaram 22 dias da minha saída do hospital da UNIMED de Caxias do Sul, onde passei 15 dias internado lutando contra o COVID19, entre UTI e período de recuperação em um quarto, até ter alta e voltar para casa. Quando cheguei, trazido pelo meu filho, não conseguia ficar de pé, tal a fraqueza a que meu corpo foi submetido durante os dez dias de UTI. Iniciei então um processo de recuperação física com a orientação segura e profissional de um fisioterapeuta que já me devolveu todos os movimentos e apenas sinto ainda falta de resistência. Mas no mais, sigo peleando e a cada dia conquistando mais e mais espaço neste mundão velho, que me quis mais um pouco aqui.

Andar flertando com a morte foi uma das emoções mais fortes que já senti. Caminhar na linha estreita que separa a chama da cinza, olhar para uma e depois para a outra e optar pela chama me trouxe forças para não me entregar. Esta força veio da minha vontade de viver, de rever os meus e também proveniente de vários lugares em forma de correntes de energia produzida por orações e pensamentos positivos que me enviaram de muitos lugares e que me ajudaram a não cair nas cinzas. A morte não tem rosto, gosto ou cor. Pelo menos eu não vi nada disso quando estava por ali. Pareceu-me um mundo de sombras e silêncio, um lugar que não me agradou estar, já que gosto muito da natureza com seus sons, cores e vibrações, vento e chuva, lua e sol, cores e cheiros.

Minha cabeça mudou um pouco e parece que o tempo agora corre mais rápido, parecendo mesmo que está com pressa. Isto me diz que eu devo acelerar as minhas ações para fazer o que ainda tenho pela frente, que uma chance de voltar para terminar me foi dada e, portanto, devo me dedicar ao trabalho de finalizar a publicação de livros e retomar a formação de grupos para que eu possa levar pessoas interessadas em conhecer o espetáculo geográfico, histórico e cultural do Topo do Rio Grande e do Desnível dos Rios, em São José dos Ausentes. Acredito que em outubro ou novembro, já estarei apto a recomeçar o trabalho que mais gosto e poder socializar o espetáculo da natureza destes locais muito especiais do nosso Rio Grande.

Ando mais em casa fazendo poucas coisas, lendo bastante e tentando escrever, o que só agora consegui, sendo este o primeiro texto que escrevo depois de retornar do hospital. Já tenho autonomia para tudo e isso me alegra, apesar de cansar com muita facilidade. Sento, caminho, deito, como, leio, durmo, faço fogo no fogão, podo alguma árvore frutífera, arrumo a horta, abraço e converso com minha neta e meus filhos, namoro a minha mulher e penso muito nesta segunda chance que ganhei. Meu médico me disse – se tu fosses um gato, terias utilizado seis das setes vidas nestes 10 dias de UTI, e isto vale mais do que ouro para mim. Não devo desperdiçar tempo e energia com coisas inúteis, mas focar à frente e agradecer as correntes de amigos, conhecidos e desconhecidos que me ajudaram a estar aqui. Valeu galera, devo isto a vocês.  

Os sons da natureza

Ouvindo a sinfonia da natureza

Quando no planeta Terra ainda não existia nenhuma forma de vida vagando pelas águas, terras ou ar, os únicos sons que existiam eram os próprios da natureza, como o trovão, o vento açoitando rochas, a água se debatendo em suas margens e cachoeiras, os vulcões vomitando as entranhas da terra e as ondas do mar quebrando nas praias. Estes eram os sons que identificavam as paisagens da terra ancestral, chamados tecnicamente de geofonias (geo = terra + fonia = som), ou os sons da terra.

Por volta de uns quinhentos milhões de anos atrás, começaram a surgir as primeiras formas de vida nas águas dos oceanos e daí em diante apareceram sempre novas espécies que começaram lentamente a povoar as águas, as terras emersas e o ar. Cada nova forma que surgia tinha que criar mecanismos de comunicação para se relacionar com os seus parentes e com o mundo ao seu redor, podendo esta comunicação ser química, tátil ou sonora, criando-se assim cheiros, gostos e sons próprios. Assim, ao longo dos milênios, a evolução foi criando uma verdadeira orquestra de milhares de instrumentos compostos pelos sons, timbres e melodias que cada espécie desenvolveu para se manter vivo, conhecer os perigos do ambiente, encontrar alimento e reconhecer parceiro para acasalamento. Assim foi surgindo, lenta e progressivamente, um segundo grupo de sons, estes produzidos pelos seres vivos, e que são denominados genericamente de biofonias (bio = vida + fonia = som).

Os animais aprenderam o significado dos sons do ambiente onde viviam e passaram a utilizá-los para seu benefício, além de criarem, cada um a seu modo e necessidade, sua própria identidade sonora. Acredita-se que a música, com toda sua complexidade de timbres como a conhecemos hoje, de alguma forma evoluiu de sons copiados de algum ritmo natural ou manifestações sonoras da natureza e de outros animais.

Seguidamente me posiciono no campo ou dentro da alguma mata e fico escutando os sons locais e vejo que eles variam com a hora do dia, a estação do ano e com o clima. Cada floresta, campo, banhado, rio, montanha ou deserto tem seus sons próprios e ouvi-los é um exercício altamente fascinante e relaxante. Esta mistura de sons geofônicos e biofônicos constituem sinfonias únicas, com identidade de lugar e tempo e são conhecidas como identidades sonoras, ou identidades acústicas de um lugar. Assim como o som de um aglomerado urbano que mistura ruídos de veículos, pessoas, vozes, sirenes e músicas – chamados de antropofonias (antropos = relativo ao homem + fonia = som), na natureza existe o mesmo, apenas que mantendo sua proporção, fonte geradora e identidade. É possível assim reconhecer lugares apenas ouvido os sons ambientes do mesmo, um estudo relativamente novo e que implica equipamentos especializados de gravação e muito conhecimento de música para a interpretação. Mas é um mundo novo que se abre ao deleite do ouvinte atento e ao conhecimento do nosso planeta e dos seus habitantes, sempre se relacionando entre si e com o ambiente. Para os mais apaixonados pelo assunto, sugiro o livro A grande orquestra da natureza, de Bernie Krause.

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