Blog Andando por Aí
O espetáculo da mata multicolorida denuncia a primavera no vértice do Cânion do Funil, em Ausentes. Ao fundo, o cocoruto do Monte Negro, lugar mais alto do RS.
Gralhas em ritual de acasalamento, um comportamento típico da estação.
Falar que a primavera é a estação das cores, dos cheiros e das canções de acasalamento de aves e anfíbios; que a primavera tem mais ventos que outras estações; que a primavera é mais clara, alegre e verde é pura redundância, é falar o óbvio. Mas estar no campo nativo no esplendor desta estação, é a forma mais direta e reta de se conferir tudo isso e outros detalhes que muitas vezes escapam de mansinho da percepção mais acurada e sutil. O campo se veste de um verde-folha impositivo e suave, estimulado pelo calor, pelas chuvas e o aumento das horas de luz do sol, esquecendo das queimadas do inverno e servindo de farto alimento para o gado, cervos e outros herbívoros que se abastecem de energia nova para enfrentarem o ano aqui inicia de fato nesta estação para a fauna.
Flores de cravo-do-mato, uma bromélia que se prende aos troncos de pinheiros na borda do campo.
As cores que surgem das pétalas de inúmeras espécies de flores e arbustos, compõe um quadro digno de pintura dos melhores mestres das telas. Como bandeiras de muitas formas e cores, aparecem pipocando pelo meio da grama verde criando contrastes abstratos salpicados aqui, ali e mais para lá como se tivessem que mostrar ao verde do gramado que elas, mesmo em menor número, são superiores. O que encanta nesta estação, além das cores, é o odor adocicado de mel que reverbera das matas, capões e canhadas onde as abelhas se emburacam em troncos ou no solo para armazenarem o dourado néctar oferecido pelas plantas.
Penso na primavera como a estação da renovação, do ressurgimento da vida que se esgueira entre as cinzas e palhas secas do inverno, espreitando o ar e testando seu potencial e suas indicações de tempo bom para recomeçar. Penso na primavera como um tempo de escapar das cinzas do passado e crescer revigorado, com novas forças para seguir uma nova etapa, novos projetos e novas parcerias. Penso na primavera como uma mola que se comprimiu durante o inverno e acumulou energia que agora é liberada de uma forma incomum, forte e intimidadora, construtiva e estimulante.
Quando falamos da idade de um jovem, dizemos de suas tantas primaveras, e de um velho, dos seus tantos invernos. Isso mostra o vigor da primeira e o ocaso do segundo. O inverno é de pausa, primavera é de explosão, de novidades, de hormônios no ar, de acasalamento e promessa de novas sementes e filhotes para breve. Mesmo com idade para ser enquadrado como velho, vejo-me ainda comemorando primaveras e acho que será assim por muitas estações ainda, já que as primaveras estão na vontade de sair das cinzas das queimadas do inverno e explorar o sol generoso e não em quantas vezes você passou por ela.
Canela é uma daquelas cidades altas na geografia que, para se chegar vindo do sul, é necessário subir as escarpas do Planalto em uma bela e sinuosa estrada que vai mostrando a beleza da encosta e preparando o visitante para o que vai encontrar lá em cima. Subindo sempre, nota-se que o ar vai mudando de quente para temperado até quase frio, mesmo no verão, e a vegetação vai alterando formas e cores, surgindo araucárias por todos os lados e, se for no final da primavera, o alaranjado das flores da corticeira-da-serra vai colorindo barrancos e matas distantes como se fossem luzes dentro da mata. Subindo mais um pouco, flores começam a aparecer nas bem sinalizadas rótulas e canteiros e, naqueles barrancos mais abrigados do sol, o maciço de hortênsias impressiona pelo verde escuro de suas folhas e colorido branco, azul ou rosa das cachopas de flores que, de tão lindas, acabaram emprestando o seu nome a toda a região, mesmo sendo originária de muito longe, de uma geografia muito diferente, lá do Oriente.
No final da subida descortina-se a vizinha e bela cidade de Gramado. Ali tudo é organizado e limpo, os canteiros impecáveis exibem diversidade de flores, formas e cores difícil de serem vistas em outros lugares. Serpenteando por dentro da zona urbana, chega-se a ampla rodovia que leva a Canela, minha cidade natal.
Aqui é diferente de outras cidades em muitos sentidos e aspectos. Tem problemas viário difíceis de solucionar, ruas simpáticas, uma bela igreja central, muitos parques naturais e um apelo atávico, um gosto de terra mãe que mesmo morando 20 anos em Porto Alegre, não esqueci. Assim que pude, voltei com a família para viver aqui e sentir o gosto da infância, o gosto da água e da terra, o aconchego dos amigos de sempre, o cheiro do ar com fumaça de fogão a lenha, o silêncio das noites e o clima temperado que tanto me agasalha. Estes elementos da minha lembrança me puxaram de volta à terra de nascimento, parecendo mesmo que estava em débito com ela por ter partido e ficado tanto tempo fora. Converso sempre com minha cidade e digo que fui embora por força de circunstância, mas sempre mantive um olho e o coração aqui. Minha cidade me entende e eu a entendo, vivemos em harmonia e ambos acompanhamos a evolução urbana, ora assustados, ora orgulhosos.
Gosto de andar pelo centro e circular pela praça da catedral e ver o quão agradável e diferenciado ficou o local de uns dez anos para cá. Gastronomia diferenciada, lojas especializadas de diferentes segmentos, muita gente circulando, fotografando e se admirando ao ver a preciosa recuperação de um prédio icônico como o Auxiliadora que tanta história abriga. Canela é bonita e parece uma linda moça que se arruma para uma festa, tendo ainda os cabelos desalinhados e a roupa provisória, mas que se vê no rosto e no corpo, uma bela mulher e que ficará ainda mais chamativa quando pronta, com roupa nova e maquiagem. Assim vejo nossas ruas sendo rasgadas e preparadas para uma nova etapa, com melhor sistema de escoamento de água e esgotos direcionados ao tratamento.
Gosto da nova praça central, com seus novos espaços, muitos bancos, flores o ano todo e que cada vez mais atrai o visitante, antes distante deste espaço. O último festival de bonecos mostrou o quão agradável está este local, abrigando apresentações e atraindo muita gente. Logo a cidade estará vestida para mais um Sonho de Natal com suas cores, luzes e alegria da festa natalina que tantos visitantes atrai. Sou um canelense de origem, orgulhoso da minha terra, da região e das minhas raízes e tive a felicidade de poder criar aqui meus filhos e ver minha neta começando a se familiarizar com os detalhes desta abençoada geografia, assim como eu fizera.
Flores de glandulária, uma erva nativa dos campos de altitude daqui de São José dos Ausentes, RS.