Blog Andando por Aí
Pouco antes do dia nascer, as cores ainda dormem na paisagem
Acordei pelas cinco da madrugada, tudo no breu ainda, rolei entre as cobertas para lá e para cá, minha mulher ainda dormindo sossegadamente no silêncio do quarto e da hora. Decidi levantar, cansado da cama e com sede do chimarrão, velho comparsa das ideias que já agitam a cabeça, planejando o dia. Depois da higiene, já com a cuia na mão e sentado na sala envidraçada com vista para o leste, vejo o negrume da noite lá fora, com seu pouco movimento, tudo sonolento ainda, tudo dormindo a noite longa. Passa um caminhão de entregas de alguma mercadoria e interrompe o silêncio da rua e aqui dentro o monólogo do rádio informa do tempo e da política. Neste dia 21 de junho de 2018 iniciou o inverno por aqui e ele já mostrou, alguns dias antes, sua fúria fria gelando o ar e branqueando campos, jardins e telhados queimando as folhas do nosso manjericão, das pimentas e da ramagem de chuchu.
O início do inverno traz junto a noite mais longa do ano, quando a alvorada é empurrada para as sete horas e dezessete minutos parecendo que o dia, com todo este frio, se recusa a sair de sua cama escura. O sol desfilará até as dezessete horas e trinta e dois minutos, atirando pouco mais de dez horas de luz sobre a Região das Hortênsias, criando o dia mais curto do ano. Poucos se dão conta deste alongamento da noite e do encurtamento do dia, mas aqui pelas bandas do paralelo 29 Sul, este fenômeno se repete incansavelmente a cada ano, marcando o solstício de inverno.
Olho para fora e já vejo uma barra alaranjada no Leste, indicando que o sol está a caminho. Pessoas começam a circular pela rua, agasalhadas com mantas, gorros e casacos pesados. Quem sai cedo enfrenta o frio da madrugada, aquele desconforto térmico que desaparece pouco depois do sol surgir e vencer a friagem. Motoqueiros entregam jornais, guardas trocam de turno, carros particulares disparam já com pressa para cumprir suas tarefas do dia que surge.
O sol surge e empurra o escuro para o seu esconderijo, trazendo as cores para a paisagem
Já perto do nascer do sol, ainda com aquela luz baça da alvorada, vejo uma corruíra andando rápida e atenta em cima do muro e percebo nela apenas duas preocupações: cuidar para não ser apanhada pelo gato que anda por ali e encontrar insetos, aranhas e qualquer outro pequeno animal que se oculte em frestas e no meio das ramagens do jardim. Esta pequena ave nativa, uma das menores que temos, agora está silenciosa, emitindo apenas pequenos ruídos quase imperceptíveis, ao contrário da primavera e verão quando canta sem parar melodias espetaculares.
O alaranjado para o lado leste aumenta e surge um ponto de luz intensa no horizonte, indicando o início oficial do dia. O lento giro da terra vai expondo o sul da América do Sul ao aconchego do calor e da luz, tão vitais para a vida por aqui. Começa o dia mais curto do ano da mesma forma como iniciou ontem e certamente se repetirá amanhã, mas o que me faz escrever hoje sobre isso é a vontade de expressar o quanto aprecio estes eventos naturais vistos diariamente na natureza. Gosto de ver a noite se recolhendo, já cansada de escurecer a terra, e ver o dia nascendo com aquele vigor e decisão de espantar o escuro e tudo iluminar.
Renovação em ciclos é o grande mantra da natureza, tudo gira e se repete num sem fim de eventos, uns mais intensos, outros mais discretos, mas sempre pulsando como se fosse movido por um gigantesco e invisível coração que bate sem parar, mantendo as estações, as chuvas, os ventos, as secas, as florestas, os bichos, os dias, as noites e a vida, enfim.
A visão de uma mata nativa de araucárias é uma das coisas mais impressionantes e gratificantes. A densidade e a imposição das copas acima das outras árvores mostra que, mesmo mais primitivas, ainda se impõem na paisagem. E o contraponto do campo dourado de inverno, termina de pintar o quadro.
Ferro e madeira para cercar, subjugar, prender.
O banco, triste pelo abandono dos humanos, chamou os musgos e líquens para lhe fazer companhia.
Fatias de caqui, maçã e cogumelos já desidratados e prontos para armazenamento
O sol é severo, benevolente, aquece, vitaliza, seca, colore, ilumina e anima. Este astro vital para a vida risca o céu diariamente, iludindo que se move enquanto, na verdade, nos espreita enquanto andamos. Joga sua luz como uma tinta que a tudo alcança e matiza naquelas horas em que ficamos virados para ele, suplicando e sorvendo a sua energia vital.
No verão ele se mostra mais intenso, fica mais tempo conosco devido ao alongamento do dia, aquecendo tudo e alegrando a estação. No inverno, com os dias mais curtos, sobe mais para o norte e manda menos luz e calor para cá, fazendo com que mergulhemos em invernos frios e com noites longas.
Aqui na terra o sol é aproveitado pelas plantas para fazer a fotossíntese, o que nos garante o alimento em toda a cadeia alimentar. Nós o aproveitamos, entre tantas coisas, para aquecer água nas residências e indústrias e gerar eletricidade em equipamentos instalados nos telhados das construções que, outrora, apenas serviam para abrigar a casa contra sol, chuva e vento.
Pela sua capacidade de aquecer e produzir a evaporação da água, o mesmo processo que faz nas plantas e que garante a circulação através dos tecidos, resolvi fazer um equipamento para secar frutas e cogumelos. Com o auxílio preciso, dedicado e profissional do amigo Leonardo Vacari e suas habilidades de marceneiro, foi construído um secador solar (foto) para este fim. Utilizei madeiras sobradas aqui de casa e uma tampa de plástico transparente conseguida na vidraçaria do amigo Fagundes para a porta. Pintei de preto fosco por dentro para que a luz e o calor fossem absorvidos ao máximo, e comecei secar coisas.
De olho na metrologia, já que preciso de no mínimo dois dias de sol, colhi cogumelos comestíveis e iniciei o processo, ajustando aqui e ali, aprendendo como lidar com o equipamento, já que era minha primeira vez a fazer isso. Acertar o ângulo de inclinação da caixa, deixar as aberturas para entrada do ar frio e saída do ar quente, controlar a condensação na tampa e testar os cogumelos para ver a sua umidade foi o roteiro a que me submeti durante dias. Consegui secar cogumelos com um grau de umidade que garante sua conservação por longo período e assim assegurei a safra, que este ano está farta e longa.
Caixa desidratadora feita de madeira, plástico e tela
Não contente, resolvi secar frutas da época e comecei com a maçã, abundante e barata neste outono, já que safra foi generosa. Escolhi, lavei e fatiei três quilos por vez e consegui bons resultados em dois dias de sol pleno, o mesmo tempo necessário para os cogumelos. Já fiz várias bandejas de maçãs que consumo durante o dia em diferentes horas e circunstâncias. Testei o caqui branco, aquele sem sementes, e o resultado foi surpreendente. O sabor concentrado das frutas, o gosto dos açúcares realçados pela pouca água enche de prazer a boca, gerando uma intensa salivação que vai restituindo um pouco da água arrancada pelo sol. Ao mascar as fatias de maçã ou caqui e misturá-la com a saliva, uma polpa vai lentamente se recompondo na boca e oferecendo sua essência e sabor, mostrando que a água retirada pelo secador deixa nas fatias da fruta o essencial, guardando o melhor para ser ingerido com calma e a qualquer hora. Bom para levar em saídas de campo.
Os cogumelos também respondem a este processo e ressecam rapidamente escurecendo um pouco e guardando, assim como o caqui e a maçã, sua essência nas dobras e meandros dos seus tecidos. Sinto um perfume incrível de chocolate nos cogumelos secos, um cheiro forte que segue pela casa e nauseia alguns e inebria outros, como eu. Colocados em água por uma ou duas horas, se transformam em tiras hidratadas de um manjar que pode ser parceiro para um risoto, um patê ou escorar uma boa omelete. O sol sempre nos oferece a possibilidade da vida, do alimento e da alegria.
Máquina de extração de petróleo na Patagônia austral, Argentina
Nos últimos dias de maio deste ano de 2018, aconteceu a famosa greve dos caminhoneiros pelo Brasil inteiro. Tudo começou a parar nas estradas e, por consequência, nas cidades o combustível sumiu das bombas e nos mercados a ausência de algumas mercadorias mostravam gôndolas vazias, fato que desencadeou um comportamento pouco conhecido das pessoas: o pânico de ficar sem comida e combustível. O medo de ter um carro com o tanque vazio para uma necessidade e a falta de hábito de andar a pé, o receio de um desabastecimento de comida e outros itens, criou corridas inimagináveis aos postos de serviços quando o pouco combustível liberado, chegava.
Durante a greve eu andava à pé pela cidade, assim como muitos outros canelenses, e sentia o ambiente mais leve, o ar mais limpo, o barulho menor, o movimento de carros como se fosse um domingo de manhã e pensava que se, ao invés de ter sido uma greve o fator desta parada, fosse devido ao colapso do petróleo e que ele, der repente, tivesse mesmo chegado ao fim, esgotado pelo excesso de exploração e as plataformas marinhas sem sugar um galão sequer, os poços terrestres secos e parados por falta do negro, viscoso, fóssil e fedorento petróleo. Como seria nossa vida?
Imagino o preço a que chegariam os derivados com o pouco que ainda tinha nos estoques das refinarias e nos gigantescos petroleiros ainda em trânsito pelos mares do mundo. Teríamos que buscar urgente uma alternativa, ou não teríamos como comer, andar rápido, distribuir toda sorte de produtos que necessitamos diariamente e que não nos damos conta que tudo vem sempre em algum caminhão, barco ou avião que necessitam de combustível derivados do petróleo. De uma forma ou de outra, estamos sendo forçados a encontrar uma saída para este dilema da dependência do petróleo, e já se observa que muitos países estão adotando medidas sustentáveis visando a substituição dos carros movidos a derivados do petróleo por silenciosos, limpos, elegantes e ainda caros carros elétricos. No Brasil este processo ainda engatinha.
Sempre foi assim, e sempre será. Quando nos encontramos numa situação limite, buscamos as alternativas que, nesta hora crítica, passam a ser consideradas em função do custo e da necessidade. Tudo que seja mais barato, parece melhor, mas isso pode ser uma falácia. Por ser abundante e barato, o carvão foi muito explorado na Europa, mas enegreceu as cidades com seu resíduo sombrio e volátil que se espalhava de cada chaminé de casa ou indústria. Com o petróleo, foi o mesmo. Abundante e generoso em se desdobrar em mil derivados e produtos, foi o rei dos insumos e transformou o mundo com sua aparentemente inesgotável fonte de energia barata, transformando-se em gasolina, óleo diesel, gás e um grande números de outros derivados.
O preço deste energético fóssil, que dormia no subsolo de diversas partes do planeta, é o que vemos hoje, com nossas cidades entupidas de carros, poluição atmosférica no limite em algumas cidades, uma incontável quantidade de plásticos de diferentes tipos a se espalhar por terras, rios e mares como se fossem restos de um grande cadáver que se recusa a se decompor.
Se comparamos o petróleo com a eletricidade, outra fonte de energia, vemos que esta última começou a ser utilizada em escala maior já em 1875 na França, quando máquinas a vapor tocavam geradores elétricos para abastecer a iluminação pública. No Canadá, um ano depois, foi instalada a primeira hidrelétrica aproveitando-se o potencial das águas das cataratas do Niágara. O petróleo teve seu primeiro poço perfurado no Azerbaijão em 1846. Na América, o primeiro poço comercial perfurado foi no Canadá em 1858 e nos EUA, em 1859. O Brasil descobriu petróleo na Bahia apenas em 1939. Como vemos, eletricidade e petróleo começaram a ser utilizados comercialmente pela humanidade mais ou menos ao mesmo tempo, e o petróleo ganhou desempenho maior em algumas áreas e a eletricidade em outras, como se tivessem combinado uma certa distribuição de tarefas. Agora parece que estamos de olho mais nos benefícios limpos e silenciosos da corrente elétrica frente ao esgotamento e impactos que o petróleo tem causado ao nosso planeta.
Parece que o petróleo não gostou muito de ter sido despertado e retirado de seu sono profundo no interior da terra e, como retaliação, emporcalhou o planta com seus resíduos que, outrora, dormiam em segurança no solo profundo.
Peninsula Valdés, onde a Patagônia encontra o oceano Atlântico
A Península Valdés é um local de grande cocentração de fauna maria e patagônica.
Tida por monótona e hostil, plana e sem atrativos, dominada por ventos fortes e com pouca água, a Patagônia é um amplo pedaço de terra que inicia ao sul de Buenos Aires, quando acaba o Pampa, e se estende até a ilha da Terra do Fogo, no final do continente Sul Americano. Na Argentina este ambiente, com mais de 4 mil quilômetros de extensão, limita-se a leste nas costas do Oceano Atlântico e acaba, a oeste, ao pé da Cordilheira dos Andes. Planícies semiáridas, vales, desertos, savanas, rios temporários e permanentes, lagos doces e salgados, salinas e uma fauna muito particular compõem este cenário único, que ora se assemelha a uma savana africana, ora com o cerrado brasileiro.
O verde aqui é raro e quase sempre presente em beiras de rios ou fundo de vales mais úmidos, devido a maior presença da água e ao abrigo do vento. O tom é dado pelo solo em muitos lugares, e as cores diversas são emprestadas dos minerais que foram expelidos pelos vulcões no passado e mesmo no presente. Estas diversas rochas, cinzas e cascalhos compõe quadros dignos de molduras. Vários tons de vermelho, preto, areia, marrom, verde e cinzas compõe a paleta de cores daqui. O vento, grande modelador da paisagem, se encarrega de agir como um pincel sem escrúpulos e vai espalhando sedimentos e cores em camadas para lá e para cá, para cima e para baixo criando as mais interessantes abstrações.
O preto absoluto, como se carvão fosse, mostra as entranhas da terra vomitadas por vulcões em determinadas áreas. Noutras o expelido é formado por camadas de cinzas de dezenas de metros, mostrando a ira do nosso planeta em tempos passados. O azulado, em alguns poucos lugares, denuncia a presença de minério de cobre e torna a paisagem mais surreal ainda.
A vegetação assume cores do verde, passando pelo marrom até o preto. Isso mesmo, algumas plantas são negras e chamadas, por isso de “mata negra” sendo isso uma adaptação a vida neste ambiente extremo. Parece mesmo que a vegetação foi queimada.
A grande ilha da Terra do Fogo tem paisagens fantásticas, com cores e texturas que lembram um quadro.
Contrastando com estas cores de flora e areia, de rochas e de vales secos e dourados, observa-se em alguns lugares grande depósitos de seixos rolados, aquelas pedras lisas e pequenas que gostamos de pegar em beiras de rios e rolá-las entre os dedos pela sua textura agradável e o tilintar do atrito entre elas. Estes depósitos gigantescos de cascalhos multicoloridos foram formados durante as glaciações em tempos remotos, quando grandes massas de gelo se deslocavam pelos vales moendo e polindo as rochas do caminho. Quando o gelo derreteu, ficaram os cascalhos multicoloridos empilhados, mostrando que vieram de rochas diferentes para enfeitar os barrancos e vales de rios do presente. A patagônia é mesmo uma terra de grandes contrastes e de belezas extremas, além de ser um local hostil a vida, exigindo de quem aqui vive ou passeia, adaptações especiais para resistir ao vento severo, a pouca água e as temperaturas baixas. As cores, alheias a estes fatores extremos, exibem-se como se imunes fossem e emprestam um pouco de matiz ao ambiente, querendo amenizar um pouco a severidade local. A paleta de cores da Patagônia desafia tudo e todos, inclusive o rei absoluto daqui: o vento.
Planícies sem fim se tornaram ideais para crição de rebanhos de milhares de ovelhas