Blog Andando por Aí
No outono de 2019 passei uma temporada de 60 dias morando num container instalado num ponto estratégico ao sul do Monte Negro, em São José dos Ausentes, com uma vista espetacular para o cânion da Coxilha. Naquele período pude conviver muito estreitamente com a natureza do local, quando registrei raros momentos da essência do conjunto de campos de altitude, borda de planalto e vista infinita para o litoral de Santa Catarina. Dias bons, com sol e visibilidade que permitiram a exploração detalhada do local, outro ruins, com chuva e cerração que me trancaram no container por dias a fio. Mas tudo valeu pelo ineditismo da experiência que me permitiu conhecer mais um pouco da natureza e sua força modeladora e, principalmente, por ampliar o meu conhecimento sobre mim mesmo, meus limites e capacidade de me adaptar ao isolamento. Isto me trouxe preciosos ensinamentos sobre uma vida com o mínimo necessário e vejo hoje como desperdiçamos coisas e momentos, como temos acessórios que são plenamente dispensáveis e que, na maioria das vezes, nos foram impostos pelo modo de vida atual.
Ver o mundo do mar é uma experiência interessante, balouçante, arriscada, emocionante, diferente. De dentro de um barco a velas o mundo se abre pelos oceanos e o vento é o combustível que ora tem pouco, ora tem muito e com um humor pouco previsível. A emoção de ver a terra se aproximando no horizonte, seja daqui de perto ou de muito longe, gera aquela expectativa do novo, de como o povo vai nos receber, como será a comida, a água as danças e as novas amizades. Sair do balanço do barco, que há tanto nos embala que até estranhamos o aprumo e a estabilidade da terra firme, permite abrir os olhos e os demais sentidos à exploração, ao conhecimento e a novos cheiros, gostos, tatos, gentes.
Eu não fui junto, mas sei um pouco desta experiência porque conheço todos os tripulantes, incluindo meu filho, que resolveram dar uma volta ao mundo em um veleiro chamado Destino Canela, quando o nome de nossa cidade foi conduzido pelo vento por mais de quatro anos, beijando as costas da Califórnia, Nova Zelândia, Austrália, Indonésia, África e finalmente na América do Sul. Sua tripulação foi variando ao longo da viagem tendo sempre a frente os irmãos Schlieper. Façanha muito arriscada e com sabor de aventura das mais apimentadas e temperadas pelos mais diversos tipos de culturas, imprevistos e apertos, de prazeres e de ondas surfadas, de reformas e pinturas do casco para resistir ao lambe-lambe das ondas salgadas.
O capitão desta aventura, anos depois desta volta ao mundo, curvou-se ao jugo da malária lá pela indonésia, nos deixando com aquela saudade infinita, imensurável. Os demais tripulantes, mobilizados como se ainda estivessem sob as ordens do capitão Guto a bordo do veleiro, encomendaram uma réplica em aço e eternizaram esta aventura em um monumento erigido na praça central da cidade de Canela, de onde era originário. Visitem o monumento, vejam a sua biografia, apreciem detalhes da viagem em https://www.facebook.com/destino.canela/ e tentem, como eu fiz, entrar no barco e viajar junto com eles sendo não mais um marinheiro, mas parte do vento que os conduziu, podendo assim ver todos os detalhes do grande feito. Um saludo a todos que fizeram parte desta inesquecível aventura tocada a vento – Guto (In memoriam), Duda, Fofo, João Pedro, Bruno, Gigante, Rasta (São Paulo) e Edinho (Esteio).
Rio Santa cruz, um manancial que deve ser preservado.
Caminhando pelas ruas de Canela, esta minha querida cidade natal, vejo que há um avanço crescente e persistente de novos e suntuosos empreendimentos imobiliários, tanto turísticos como residenciais. Onde antes havia um terreno com uma casa, uma horta e até um pequeno pomar ou mata residual com araucárias, ipês, cedros e guabirobas surge um prédio com muitos apartamentos, lojas e pouca ou nenhuma testemunha verde do que fora aquele terreno. Sei que este é um dos caminhos do desenvolvimento de uma região que ficou famosa, ainda tem atrativos naturais e culturais em quantidade e se transformou numa meca para empreendimentos imobiliários. Penso que isso é assim e que pouco se pode fazer para impedir este avanço, mas vejo com preocupação algumas coisas:
Toda cidade tem grupos de amigos que se formam na infância modelados pelo convívio diário na escola, nas brincadeiras de rua, nos acampamentos e nas festas da comunidade. Eu tive o privilégio de ter uma turma assim, com amigos muito próximos e importantes, mas tinha uma coisa que nós admirávamos muito: a turma dos mais velhos! Éramos crianças, mas naquela época a diferença de dois ou três anos, era algo a se admirar. Sempre estávamos sintonizados com nossas coisas, gostos e brincadeiras, mas observando, admirando e sabendo do que a turma dos mais velhos fazia. E tentávamos imitá-los em algumas, coisa difícil pela diferença de idade, mas tentávamos.
Retornar a Estância Tio Tonho e rever os amigos e lugares, é um dos meus grandes prazeres. Estar no lugar em que no inverno de 2016 iniciei um projeto arrojado e desafiador de fazer um retrato da paisagem, das pessoas, das atividades agropecuárias e do turismo rural foi como descobrir um mundo novo, particular e regionalizado. Assim eu vi e vivi aqui por quase cem dias distribuídos nas quatro estações do ano, abrindo assim uma janela na história local onde se enxergam pessoas que residem aqui, outras que já partiram, algumas de lugares muito distantes, animais nativos em seus ambientes, outros exóticos acompanhantes do homem rural, a flora e suas mudanças nas quatro estações com o desfilie de cores e formas de flores, frutos, folhas e tudo o mais que comanda a vida por aqui.
Final de tarde perto do Monte Negro
Há livros de diversos tipos e finalidades, sendo uns dedicados a romances, outros a histórias de guerras ou da espécie humana, alguns sobre ficção que avança ou recua no tempo, coleções dedicadas a autoajuda, muitos chamados de didáticos, utilizados na escola, outros tantos técnicos, que assessoram engenheiros, arquitetos, químicos, físicos e biólogos a entenderem melhor o mundo e seus mecanismos.
Autor olhando para o Topo do Rio Grande, o Pico do Monte Negro, e seu cânion homônimo a seus pés (foto do livro)
Hoje me levantei mais cedo do que o horário habitual. Lá pelas três da manhã acordei e não consegui mais dormir. Tentei chamar de volta o bom sono da madrugada, mas todos os meus pensamentos me traziam para a realidade, não para o sonho bom dos sonos tranquilos. Rolo para cá, rola para lá, destapo os pés, ouço a tranquila respiração da minha mulher ao lado em um profundo descanso, tento mais e mais desligar a chave geral das coisas que rodam na minha cabeça, mas nada.