Blog Andando por Aí
Andando pelas ruas de Canela neste início de outono, presto atenção naqueles terrenos baldios que, a cada ano, são mais raros. Mesmo assim ainda tem alguns por aqui, por ali e que fazem a festa das plantas nativas ou exóticas que por eles se espalham ao gosto de suas adaptações. Um jardim feito pelo homem tem regras, simetrias, distribuição estudada de plantas que florescem e fenecem em tempos estabelecidos, tudo para criar o belo, o atraente, o diferente que deve encantar o dono da casa ou do condomínio em questão.
Neste início de outono, aqui em Canela – RS, é possível ouvir durante o dia uma intensa atividade de pequenos bandos de papagaios, que fazem alaridos emitindo sons de cráum, áum, cráum, áum naqueles bairros que ainda tem algumas reservas de florestas decorrentes da conscientização de alguns moradores e de leis de proteção. São os papagaios-do-peito-roxo (Amazona vinacea), uma espécie residente o ano todo por aqui e que neste início do outono estão atentos ao amadurecimento de seu principal alimento: o pinhão, esta preciosa semente das araucárias.
Há 31 anos, durante a conferência conhecida como Eco-92 realizada no Rio de Janeiro, ficou estabelecido que o dia 22 de março seria escolhido para se comemorar o Dia mundial da água. Desde então, todos os anos é escolhido um tema para reflexão e o deste ano é o seguinte: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”. Vejo inúmeras manifestações nas redes sociais sobre a água, sua pureza, benefícios e importância para a vida no planeta. Nada destas manifestações me comove, uma vez que vejo nisso apenas uma lembrança de uma data criada por nós mesmos, sendo que nos demais dias do ano simplesmente ignoramos o que acontece com ela.
A natureza tem suas formas e maneiras de mandar mensagens indicando a chegada, o andamento ou o término de uma estação. Dias curtos, frios e noites longas; inverno. Dias longos, quentes e noites mais curtas: verão. Sabiá-laranjeira cantando de madrugada: primavera. Floração do manacá-da-serra: outono. Os exemplos aqui citados são apenas alguns que ocorrem aqui na minha cidade, localizada no nosso hemisfério sul e na latitude de 29 graus, ou seja, bem longe do equador. Em cada latitude, mais alta ou mais baixa, as manifestações da natureza mudam e os indicadores também. No equador, por exemplo, os dias e as noites são sempre do mesmo tamanho, não importando a época do ano, e esta variação não tem a menor serventia para diferenciar lá a mudança de estações.
Aqui em Canela, na Serra Gaúcha, tem uma lancheria que atrai seus comensais não só pelos deliciosos lanches, sempre feitos na hora, mas também por ter se tornado um ambiente sem o menor preconceito por raça, cor, ofício, sexo, preferência clubística ou por seja lá o que for que diferencie as pessoas atualmente. Todos são bem-vindos e convivem por dez ou vinte minutos (menos o Tomate, que tem cadeira cativas por horas...) numa agradável confraternização entre dentadas em bifinhos, croquetes, pastéis ou enroladinhos e goles de café, sucos ou batidas de diversas frutas.
Mistério, medo, ignorância, encantamento e curiosidade. Estes são alguns dos substantivos que encontro para definir os cogumelos. Os três primeiros eu os tinha quando nada conhecia sobre estes organismos de sombra e umidade. Quando os encontrava, evitava, chutava, ignorava. Depois de cursar Biologia, desenvolvi os outros dois substantivos, que me norteiam até hoje. Sempre soube que a ignorância é o que nos afasta de pessoas, plantas, animais e fatos, como a história, por exemplo. Conhecendo-os um pouco mais, vi que o mistério, o medo e a ignorância não tinham nenhum sentido e só estavam ali plantados na minha mente por desconhecer a essência dos cogumelos.
Todas as gerações têm seus ídolos e acontecimentos impactantes que as acompanham pelo resto da vida. A minha não foi diferente e vou dar aqui alguns poucos exemplos que foram marcados a fogo.
- Vivenciei a construção do nosso maior monumento urbano, a Catedral de Pedras. Diariamente, quando ia para as aulas no Colégio Marista, via e ouvia os pedreiros batendo seus martelos nas ponteiras de ferro para alinharem milhares de pedras de basalto que iam se encaixando e revestindo as paredes deste famoso monumento. Aquela cadência de batidas parecia uma música monótona de algumas poucas notas que persistia por horas, dias, anos...
- Conheci o Parque do Caracol quando ainda era a propriedade particular da família Nunes e, para entrar e ver a cascata que falavam que ali existia, passávamos por uma cancela, igual a tantas que existem até hoje nas fazendas por nossa região, atravessávamos um potreiro e lá estava a cascata, jorrando imponente a água num vazio de mais de 130m e produzindo um som grave e acachapante de coisas grandes sendo quebradas e moídas. Aquele som ouvido pela primeira vez, até hoje eu o identifico na memória quando me lembro da cascata. Acampávamos onde hoje é o estacionamento de ônibus do parque, sempre em noites de lua cheia, para podermos saborear o efeito da tênue da luz nas águas da cascata que se acendia com longos filamentos prateados e se quebravam nas pedras do poço.
- Fui contemporâneo de uma banda inglesa que surgiu para o mundo em 1963 e que fazia um sucesso arrebatador, envolvente e indescritível. Falo dos Beatles. Nesta época eu tinha 12 anos e os Beatles e seus sons entraram direto na veia sem pedir licença. Recebíamos os discos de vinil direto de Porto Alegre, trazidos por algum amigo, e ouvíamos até quase gastar os sulcos... Indescritível o que aquelas músicas faziam em todos nós. Lembro-me de um aparelho de rádio que tínhamos em casa, sempre sintonizado na rádio Guaíba, que tocava todos os dias alguma música dos Beatles. Meu pai me perguntava: “quem são estes bitlis?” E eu dizia que era um conjunto da Inglaterra que usam cabelos compridos e tocavam guitarras. O cabelo comprido era um desejo e um desafio de tentar deixá-los igual aos dos ídolos, mas o padrão da época para pré-adolescentes como eu, era o corte cadete, aquele cuja cabeça parecia a de um milico no quartel. Lentamente fui conquistando alguns centímetros de cabelos mais longos e isso era fantástico. Criamos uma banda que era uma cópia canelense dos Beatles – os Danger Boys. Meu falecido irmão Beto encarnava o Jorge Harrinson, o Jair da Veiga era o Ringo Star, o Carlos Saul pensava ser o Paul McCarteny e eu, pretensiosamente, era um sósia do John Lennon. Na rara foto que ilustra esta coluna, os Danger Boys tocaram no Clube Serrano no aniversário de uma amiga, a Maria Luiza Spindler.
Cinquenta anos depois, vejo que os Beatles não eram um sucesso daqueles anos apenas. Até hoje suas músicas são atuais, ouvidas, curtidas e passadas de geração em geração. Uma característica desta banda era o de não ser identificados pela voz de um cantor apenas, mas o talento era do coletivo. Músicas com harmonias de três vozes embalavam a juventude dos anos 60 e ainda continuam. Todos os quatro cantavam, apesar do domínio da dupla Lennon& McCarteney. Considero-me um privilegiado por ser da geração Beatles, o grupo que mudou a música que até hoje reverbera na minha mente como, numa outra escala, o brandir dos martelos daqueles anônimos pedreiros que ergueram a nossa catedral e o som grave das águas do Arroio Caracol quebrando coisas no poço da base da cascata.