Blog Andando por Aí
Durante a história evolutiva do homem os rios, lagos e oceanos estiveram sempre presentes marcando a memória ancestral, assim como o fogo, a sede e a fome. Água e fogo estão muito ligados à minha vida e sempre me deram prazer e relaxamento em geografias tão distantes e diferentes como a montanha e a planície. Num banho de rio a água passa sobre a pele arrancando e levando por diante dores, suores, medos, más lembranças e o calor que incomoda. Tudo segue rio abaixo sem que ele me cobre nada por isso, deixando o corpo em sossego e com um agradável alívio térmico semelhante ao de um bom banho de chuva. É uma troca onde aquilo que me incomoda é o que a água leva, e o que me faltava, ela me traz. Assim é um banho de rio, um exercício completo de relaxamento e reencontro com um elemento da natureza vital e insubstituível.
Sempre se renovando, a água de um rio nunca passa duas vezes pelo mesmo lugar e isso faz com que ela me trate sempre como se fosse o primeiro encontro, com toda a sua gentileza de levar o que me incomoda e presentear com o que tem de melhor. Talvez este seja o grande segredo e por isso é sempre muito revigorante e agradável. Como um cachorro que gosta muito do seu dono, as vezes a água quer nos manter juntos para sempre, criando situações sinistras de posse que acabam em destruição em tragédia. Mas sabendo lidar com ela, podemos usufruir de sua infinita bondade e habilidade em nos proporcionar momentos únicos.
O fogo, antagônico natural da água, faz o contraponto perfeito para o equilíbrio de um prazer atávico, envolto em mistérios que nos elevam junto com as chamas a uma altura invisível, a lugares únicos e misteriosos. Esta mesma água que nos acalma com seu prazer refrescante, consegue apagar o fogo que nos aquece, parecendo que sente ciúmes das chamas que se elevam e iluminam tudo e todos em volta, coisa que não pode fazer com seu corpo líquido, amorfo e sem luz. Ou talvez o fogo queira ser maior que o rio, quando se alastra em grandes incêndios medonhos, e aí a água desce e acaba com a sua pretensão descabida, mostrando que cada um teu seu reino, função e espaço, sendo que o encontro dos dois é ruim para o fogo, já que se extingue e a água, ao sofrer o impacto com as chamas, muda para o estado de vapor, podendo assim fugir para cima e se esconder nas nuvens.
A primeira lembrança que eu tenho da palavra graxaim vem do meu pai, quando eu ainda era criança. Ele usava a palavra pejorativamente para designar qualquer pessoa que, por algum motivo, não “prestava”. Aí ele lascava: “...é um graxaim!”. Só depois entendi o que esta palavra engraçada significava de fato: era o nome de uma espécie de cachorro-do-mato, pequeno e curioso que podia ser visto e/ou ouvido nas noites de acampamento que fazíamos num local que hoje abriga o Distrito Industrial de Canela. Era um local de mata densa, arroios e nascentes límpidas que compartilhei durante muitas férias de verão com meus amigos de infância. Acho que foi deste período que se instalou em mim o gosto e a admiração pela natureza e seus elementos.
Anos depois, já na PUC durante o curso de Biologia, conheci melhor este pequeno carnívoro nativo do Brasil e na biblioteca encontrei um trabalho técnico feito na Argentina sobre uma espécie de graxaim da região da Patagônia. Fazendeiros de lá reclamavam que os graxains estariam imprimindo baixas severas aos rebanhos de ovelhas e permitiram um estudo científico no local. Durante dois anos os biólogos, coordenados por Jorge Crespo, capturaram 257 animais e analisaram, entre outras coisas, o conteúdo estomacal deles. Surpreendentemente, o resultado mostrou que mais de 60% do material encontrado referia-se a restos de roedores nativos e lebres, sendo que apenas pouco mais de 20% representava restos de ovinos, ainda assim grande parte era de carniça. Provou-se que, muito antes de ser o responsável pela predação de ovelhas, o graxaim exercia um papel de controlador natural de espécie de roedores e lebres, que se alimentavam do mesmo capim das ovelhas. Conto isso para mostrar que o nosso graxaim aqui deve exercer ações semelhantes aqui nas fazendas da região, sendo mais útil vivo do que morto.
No Rio Grade do Sul temos duas espécies de graxains: o graxaim-do-campo, que tem cor mais clara e vive mais em áreas abertas e o graxaim-do-mato (foto) que é mais escuro e vive sempre associado a áreas de matas e capoeiras. Tenho visto muitos graxains atropelados nas estradas, sinal de que esta espécie se desloca continuamente. Ele não está ameaçado de extinção, se adapta bem as mudanças que o homem imprime ao meio ambiente e não tem nada de pejorativo. Sugiro utilizar a expressão “...é um graxaim” para alguém esperto, rápido, e com grande resiliência, esta capacidade que algumas espécies têm de superar obstáculos, resistir à pressão de situações adversas do ambiente e adaptar-se rapidamente a mudança. Certamente que o meu pai não iria se importar com esta inversão de sentido de seu adágio preferido.
Na época remota em que no planeta ainda não existia nenhuma forma de vida vagando pelas águas, terras ou ar, os únicos sons que existiam eram os próprios da natureza, como o trovão, o vento açoitando rochas, a água debatendo-se em seu caminho nas margens e cachoeiras, os vulcões vomitando as entranhas da terra e as ondas do mar quebrando nas praias. Estes eram os sons que identificavam as paisagens da terra ancestral, chamados tecnicamente por Bernie Krause de geofonias, ou os sons da terra.
Mesa pronta: capeletti, crem, queijo, focaccia e vinho
A estação fria do ano, e as vezes muito fria, começa pelo final de junho e segue até meados de setembro, gelando e molhando tudo aqui pela serra gaúcha. Quem mora em Canela e região, sabe bem dos encantos e transtornos que esta estação traz, com aquele seu humor muitas vezes azedo, ou quando se torna possível uma lagarteada ao sol, escasso e disputado, comendo aquela inesquecível bergamota que, além do sabor doce de seus gomos, empresta o perfume do óleo que se desprende de suas cascas, marcando mão e roupas por algumas horas, como se fosse essa a exigência da fruta: ser lembrada também pela sua essência aromática.
A goiaba-serrana é uma fruta bem sul-brasileira, adaptada a viver pela serra com seu frio, suas matas de araucária e sua altitude. É fruta nativa que traz aquele gosto doce e meio ácido que tanto a caracteriza e encanta, sendo um presente para ser consumida quase sempre durante uma caminhada pelas matas no início do outono, ou quando cultivadas em jardins e pomares domésticos para deleite dos moradores e da gurizada que ainda tem aquele hábito de subtrair frutas dos vizinhos. As goiabas-serranas começam amadurecer um pouco antes dos pinhões e, juntos – fruto e semente, formam uma dupla imbatível em nossas matas da serra.
No final de uma estrada rural, que cruza por campos e matas nativas, existe um daqueles destinos surpreendentes pela sua harmonia, beleza natural e integração da natureza com as atividades humanas que ali se desenvolvem. Sons de aves, do vento nos galhos das araucárias, da chuva com seus relâmpagos e trovões, do sol e da sombra que as grandes árvores projetam no chão gramado são os elementos naturais que recepcionam as pessoas que ali chegam. Estrutura bem montada para receber grupos de estudantes ou de famílias para usufruírem de muitas horas de convívio e descobertas na natureza prodigiosa, permite identificação de árvores, como araucária, goiaba-serrana, cambuim, branquilho, aroeira-preta, ipê-ouro, camboatá-vermelho, pinheiro-careca, guabiroba e muitas outras, ou o encantamento pelo encontro de aves, como pica-pau-do-campo, papagaio-peito-roxo, tiriba-da-testa-vermelha, quero-quero, sanhaço-cinzento, seriema, urubu-de-cabeça-preta, perdiz, carancho, sabiá-ferreiro e muitos mais que por ali fazem morada.
Queijo é como vinho ou chocolate: eles se mostram mesmo é na boca. Um queijo pode ser feito de muitas formas e com leites de diversas espécies de ruminantes como vacas, búfalas, cabras e ovelhas. Cada um destes mamíferos empresta um gosto especial ao leite, sendo o queijo resultante fruto de uma soma de fatores, tanto ambientais como de manipulação.
Há muitas etapas a serem cumpridas até que o queijo surja, amadureça e chegue à boca do consumidor. Aqui no Rincão Comprido, em São José dos Ausentes, a produção diária de um dos queijos mais premiados da região inicia bem cedo e ainda na cozinha da casa, onde a família Lopes se reúnem em volta do fogão a lenha para tomarem um café preto com açúcar. Ali combinam detalhes, falam das coisas da casa e ajustam os preparativos para a ordenha, numa espécie de concentração para o trabalho de duas a três horas que vem pela frente. O balde de água bem quente para higienização de mãos e tetos das vacas já está pronto e o grupo segue em silêncio para o galpão. Berros de vacas e terneiros já são ouvidos denunciando a fome dos últimos devido ao período de 18 horas que ficaram separados das vacas.
Uma a uma as vacas são trazidas para o abrigo sombrio do galpão de chão batido e vão se posicionando aleatoriamente a espera de seus terneiros, que estão em um compartimento ao lado. Este tempo no galpão parece uma boa hora para as vacas ruminarem, já que não há pasto disponível. Parecendo que mascam chicletes, elas mastigam incansavelmente os bolos de grama e saliva que regurgitaram para a boca. Em seguida engolem o mascado e regurgitam novo bolo, reiniciando o processo. O berreiro dos terneiros denuncia sua fome por leite e pelo contato com as mães. Auxiliado pelo patriarca Antônio Lopes, uma a uma as vacas são amarradas e seus terneiros trazidos para que comecem mamar, dando cabeçadas no úbere, liberando o leite, ação conhecida como apojo. Em seguida as mulheres da casa – Dona Maria Lopes e sua filha Edinaira, iniciam a ordenha num ambiente de pouca luz, com mugidos angustiados, música gaúcha e notícias locais da Nevasca FM, chiado do leite saindo dos tetos e se derramando nos jarros, vozes de comando das mulheres chamando cada terneiro e vaca pelo nome, cheiro de galpão e de leite quente que, juntos, formam uma sinfonia campeira que embala a fase da ordenha.
A última vaca ordenhada tem o seu leite destinado ao consumo da casa e ao preparo do camargo, esta deliciosa mistura de café preto recém passado com o leite tirado ali no galpão, esguichado diretamente na caneca, criando uma cremosidade e um sabor indescritíveis.
Finalizada a ordenha, as vacas já soltas com seus terneiros no pasto próximo, Dona Maria já está na queijaria paramentada com avental e toca iniciando o processo de ajuste do sal e da adição do coalho ao leite cru. Todo o produto da ordenha da manhã – 30 litros neste início de início de primavera, agora passa pelo processo de formação da massa que originará o queijo. Separado o soro da massa, é hora de encher as formas, apertar mais um pouco com as mãos e colocar um peso para que saia o restante do líquido e o queijo adquira sua forma definitiva.
Dona Maria prepara a alquimia que transformará leite crú em queijo
Cerca de vinte horas depois os queijos são retirados das formas e colocados para curar, o que leva no mínimo 60 dias. O soro, um líquido amarelado e rico em nutrientes, é dado para os porcos e para as mesmas vacas que o produziram, criando-se assim um ciclo.
O sabor deste queijo é fruto de uma soma de fatores que envolve alimentação e manejo das vacas, as raças rústicas criadas, a sanidade do rebanho e, principalmente, a utilização de uma receita ancestral que acompanha a família Lopes por mais de 200 anos. Dona Maria e Edinaira são dedicadas e muito profissionais, levando o trabalho da confecção deste queijo como um compromisso com seus antepassados, com a família e com todos os turistas que usufruem desta iguaria que tem uma identidade, uma história e muito amor envolvido. Tudo isto para que você coloque um pedaço deste queijo na boca e sinta a delícia que foi produzida pela alquimia que transformou leite cru, sal, coalho e muita dedicação, em um manjar que pode ser consumido puro ou com qualquer outro acompanhamento, inclusive um copo de vinho ou um pedaço de chocolate. Comer um queijo destes é como descobrir o sabor oculto dos Campos de Cima da Serra.