Blog Lagoa do Peixe

Alegorias da Lagoa do Peixe

Flores de cactos com seu amarelo intenso, que mais parecem farois para atrair insetos

A Lagoa do Peixe é um corpo de água que se estende numa área plana do litoral sul e que envolve terras do município de Tavares, entre a Lagoa dos Patos e o Oceano Atlântico. Trata-se de um ecossistema que mistura campos, banhados e matas de restinga, além das águas rasas da lagoa. Neste ambiente costeiro, plano e arenosos medram centenas de espécies de plantas de tamanhos, cores, texturas e aspectos diferentes. Nesta minha estada aqui na região, além de focar nas centenas de espécies de aves, andei muito em áreas secas e úmidas de campos, dunas, matas e banhados que margeiam a lagoa e, nesta época de primavera, pude registrar a grande diversidade de flores e frutos que se exibem aos insetos, morcegos, beija-flores, sabiá-laranjeira e cambacicas entre tantos outros comensais.

Encontrei muitos cactos em plena floração, exibindo suas flores amarelas muito atraentes que colorem os capões e bordas das matas. As mamangavas e beija-flores se deliciam com o abundante néctar oferecido em troca da polinização, que resultarão em belos frutos na entrada do verão. Os abundantes e agressivos espinhos, afastam a maioria dos predadores.

Num barranco arenoso, perto da Lagoa, encontrei a pequena Drosera, uma delicada planta carnívora que estava com seu pendão de flores. Nanica, rasteira e eficiente pegadora de moscas e outros pequenos insetos, utiliza como arma uma substância pegajosa que prende os pequenos animais que são atraídos pelo seu odor e gosto adocicados. Digerindo estes insetos a Drosera consegue nutrientes inexistentes nos pobres solos arenosos do litoral.

Pequena Drosera, planta carnívora no meio do gramado, com suas flores brancas

Os gravatás estão exibindo suas espigas que mais parecem doces decorados de uma confeitaria campeira. A beleza de suas cores e formas compensa a agressiva folhagem bordada de espinhos que intimida a aproximação, ficando as flores no meio protegidas pela coroa de folhas espinhentas, sendo permitido acesso apenas aos pequenos polinizadores alados.

Inflorescencia de gravatá

Vi, nas matas mais secas, uma variedade de frutos já maduros que atraem os animais pela suas cores e aromas. O maracujá-do-mato, com aquele amarelo alaranjado, fica dependurado nos galhos de árvores mais altas oferecendo sua viscosa substância adocicada que recobre as sementes que, quando ingeridas, são transportadas para longe pelas aves e morcegos. Por ser uma trepadeira, enrosca-se em qualquer árvore, escala seus galhos e expões seus frutos a quem se interessar, como se daquela árvore hospedeira fosse. Encontrei também o chal-chal, uma árvore que estava carregada de frutos maduros, pequenos, amarelos e que abastecem uma grande cadeia alimentar da região. De gosto adocicado, esta fruta é também conhecida como olho-de-pomba, vacum, baga-de-morcego e mais uns quantos nomes populares.

Fruto maduro de maracujá do mato - sobremesa campeira

Frutos maduros de chal-chal - festa para as aves.

Nos banhados que abastecem a Lagoa do Peixe há muitos aguapés e outras plantas aquáticas floridas que torna a monocromia do verde mais alegre com suas flores lilases, boiando sobre as águas rasas e contrastando com as cores vibrantes e vaiadas das aves que por ali andam. Assim está a primavera por aqui, um lugar que atrai as pessoas pela grande variedade de aves residentes e migratórias, mas eu não vi só aves e me agrada muito ver o todo, o cenário inteiro e o seu funcionamento. Há muito mais que aves e peixes neste santuário chamado Parque Nacional da Lagoa do Peixe.

"Happy hour" de caranguejos.

 

Grupo de caranguejos forrageando em poça de lodo da margem da Lagoa do Peixe, em Tavares - RS

Os grandes movimentos

Bando de flamingos nas águas rasas da Lago do Peixe

Migrações são movimentos voluntários de espécies animais em busca de novos lugares para povoarem, para se reproduzirem ou para simplesmente descansarem e se alimentar. Aqui na Lagoa do Peixe, em Mostardas, é um destes locais onde muitas aves utilizam para descanso, alimentação e reprodução. Uma das espécies mais emblemáticas daqui é o maçarico-do-peito-vermelho, pequena ave que desafia a lógica dos deslocamentos e constrange os sedentários. Todos os anos elas executam, sempre em bandos, um trajeto de 32 mil quilômetros sobre o continente americano e o oceano Atlântico. Agora, na primavera, elas estão aqui na lagoa do Peixe para descansarem do período reprodutivo que tiveram nas geladas terras do Ártico Canadense. Indivíduos anelados e acompanhados, mostram que esta viagem se repete sistematicamente por até dezenas de anos por um mesmo indivíduo. Fico pensando na possibilidade de alguns mamíferos fazerem isso e vejo que sim, já fizeram e atravessaram o mundo. Falo da nossa espécie que, não voando, mas caminhando e navegando cruzamos o planeta de lesta a oeste, de norte a sul. Mas isso em milhares de anos. 

Bando de trinta-reis no litoral, perto da brra da Lagoa do Peixe

Outra ave típica da lagoa nesta época é o flamingo, belíssimo animal de grande porte, pernas longas para poder se mover em segurança nos banhados e charcos, é um exemplo de migração mais restrita. Vi flamingos em lagos andinos no Chile, lá no deserto do Atacama e perto da Terra do Fogo, em lagos rasos em El Calafate. Elas migram atrás de lugares seguros para acasalarem e criarem seus filhotes e aqui é um destes sítios.

A sina de ter que migrar todos os anos torna a vida destas aves menos previsível, menos aborrecida e nada parecida com a de um sabiá-laranjeira ou de um tico-tico que nasce, cresce e morre nas nossas praças ou jardins. Passar a vida inteira voando ou surfando as correntes aéreas parece ser uma boa alternativa à vida sedentária e nascer no Canadá, no distante hemisfério norte e passar a primavera e o verão nas terras austrais da Patagônia argentina, parece bem emocionante. As escalas das viagens também são bem interessantes, passando pela Lagoa do Peixe e Taim, como fazemos numa viagem de carro até Garopaba, quando paramos no Becker para um lanche e descanso. Tudo na sua escala, mas com o mesmo objetivo.

Pequeno bando de maçarico-do-peoto-vermelho, com a coloração de repouso.

Fico impressionado com os bandos de Trinta-réis, com dezenas e até centenas de indivíduos sincronizados em voos pelos baixios ou no litoral, próximo da barra da Lagoa. Aqui, nesta primavera e verão, estes bandos permanecem para descanso e alimentação, seguindo no outono para o hemisfério norte onde fazem sua estação de cria.

O talhamar com seu longo bico característico

São dezenas de espécies que se abastecem do supermercado da Lagoa do Peixe, com suas iguarias frescas e sempre renovadas, ora vindas do mar, como os camarões, ora geradas ali mesmo nas águas rasas e quentes da Lagoa. Durante minha permanência na Lagoa do Peixe, vi muitos “caçadores” modernos de aves, com seus equipamentos fotográficos caríssimos e suas roupas camufladas, decididos a capturar detalhes das diversas espécies que aqui se exibem em abundância. Também vi ONGS e técnicos do governo promovendo e mostrando para alunos e interessados a diversidade da fauna e a importância da lagoa que faz parte do município de Mostardas. Tudo isso durante o já famoso Festival internacional de Aves Migratórias que ocorre sempre nesta época. Muita informação e discussões sobre o tema migrações, muito envolvimento de crianças com diversas atividades lúdicas com as espécies migratórias e, principalmente, destacando a importância daquela grande, estreita e rasa lagoa que mora nas areias do seu município e se estica até a vizinha Tavares.

Aves da Lagoa do Peixe

 

Um biguá em atividade de pesca na Lagoa do Peixe

Ser uma ave na região da Lagoa do Peixe deve ser bem confortável sob o ponto de vista da disponibilidade de alimento. E é assim. Há uma farta cadeia alimentar instalada nos banhados e lagoas rasas, no campo e nas matas nativas da restinga, no litoral e mesmo nas dunas. Basta que cada espécie encontre seu nicho e seu alimento, já que cada uma tem sua dieta, com algumas exceções. As garças, em sua maioria, são pescadoras e utilizam seus longos bicos e sua paciência em permanecerem imóveis por longos períodos nos baixios das lagoas, aguardando o momento de se lançarem com seus longos e certeiros bicos sobre as presas que por ali passam. Na mesma linha de comedor de peixes, está o martim-pescador que, ao contrário das garças, utiliza poleiros para avistar seus peixes e dali se arrojar sobre eles. É uma festa para a mesa, já que peixe não falta. Os biguás, também pescadores, desenvolveram outra técnica e buscam os peixes mergulhando e indo atrás deles no fundo dos lagos, açudes e arroios. Todos comem peixes, mas cada espécie captura de uma forma, em lugares específicos sem interferência nas demais.

Conchas vazias de caramujos aruás, comida preferencial do gavião-caramujeiro

Tem também aquelas aves que vivem de pequenos vermes, moluscos e camarões que se proliferam aos milhares no lodo e nos baixios da Lagoa. O colhereiro e o flamingo, belas aves vermelho alaranjadas, ficam nestes locais rasos filtrando o lodo e ingerindo o que por ali se mistura, seja um pequeno caramujo, um camarão, alevinos, algas ou vermes. Inclusive a cor alaranjada destas duas espécies é emprestada por pigmentos encontrados em algumas algas e camarões, os chamados carotenoides, que são parte importante de sua dieta.

Bando de flamingos nas águas rasas da Lagoa do Peixe

O gavião-caramujeiro, grande ave de rapina, negro e dono de uma dieta muito específica, tem abundância de caramujos aruás a sua disposição. Fica sobrevoando os banhados e arroios e captura os caramujos nas águas rasas e entre os aguapés e os leva para serem consumidos em algum poleiro do campo, quase sempre um mourão de cerca ou árvore isolada. É tão especializado este gavião que o seu bico curvo tem uma adaptação para cortar cirurgicamente o músculo que prende o molusco dentro da concha. Em um golpe rápido e certeiro, ele se livra da concha e ingere todo a parte mole do caramujo como se fosse um gurmet consumindo ostras em um restaurante. É fácil identificar os locais de alimentação deste gavião pela presença das conchas vazias ao pé dos poleiros.

O tachã, com sua cabeça desproporcionalmente pequena em relação ao corpo, resolveu diversificar, incluindo em sua dieta plantas aquáticas e pequenos animais. Como os quero-queros, são fortes denunciadores de intrusos em seu ambiente, como eu que, em vão, tento me aproximar dos bandos para observar e fotografar. Sou denunciado por gritos estridentes ouvidos por todo o banhado, alertando sobre a minha presença. Parece que aprenderam com os quero-queros a darem alarme contra intrusos. Enquanto não me afasto, não param de gritar, principalmente neste período em que estão com ninhos nos banhados, e sempre naqueles locais mais inacessíveis. Consigo alguns registros de longe ou quando fazem algum sobrevoo sobre mim.

Uma garça-moura pescando na beira da praia, próximo a barra da Lagoa do Peixe

A jaçanã, para diminuir a concorrência, se especializou em andar por sobre a vegetação aquática que flutua nos banhados e lagoas. Tem os dedos longos e seu pequeno peso permite que se movimente agilmente sobre os aguapés e marrequinhas-da-água e se farta dos insetos e outros pequenos animais que vivem naquele emaranhado de raízes e folhas flutuantes. O mais interessante desta ave cor de ferrugem é sua plumagem verde limão exibida em suas penas das asas durante o voo.

Há uma espécie de acordo tácito entre estas espécies relativo ao que comer, onde e quando, por isso podem conviver num mesmo ambiente sem competirem umas com as outras. Cada uma com sua dieta, com seu alimento preferido e todos em paz, não fosse pelos gaviões que rondam permanentemente ninhos com ovos ou filhotes. A cadeia alimentar não tem nada de romântica. Ela é objetiva, justa e cruel. (Segue na próxima semana)

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