Blog A Borda

Conheça o outro lado

 

Vista do cânion Monte Negro em manhã de inverno, com a geada cobrindo o campo

Você gostaria de conhecer os bastidores das duas mais eletrizantes experiências de vivência na natureza que eu fiz? Gostaria de conhecer alguns dos lugares que me inspiraram a escrever as diversas crônicas sobre A Borda? Interessa andar pela orla do cânion Monte Negro e saber o que me inspirou para escrever as crônicas da série Um ano no Topo do Rio Grande? Pois esta possibilidade de estar por lá e ver os locais mais especiais deste icônico local do Rio Grande do Sul está se formatando. Com o encerramento dos trabalhos na Borda e no cânion e pico Monte Negro, locais que estão muito próximos geograficamente, senti uma saudade irresistível de voltar e rever estes sítios, as gentes queridas que vivem por lá e de mostra-los para mais pessoas. Assim, num átimo, pensei em socializar as duas experiências que tive e formar um pequeno grupo de até 10 pessoas que se mostrem interessadas em me acompanhar em uma viagem diferente, com o foco nos pontos mais destacados e que me inspiraram a escrita e os registros fotográficos para a produção do material que desfilou aqui pelas páginas do jornal Nova Época.

A solidão na Borda

 

Viver só, abrigado num contêiner/casa aqui na Borda, mesmo durante um período relativamente curto de uns 45 dias, é um exercício extraordinário de autoconhecimento e que me elevou a um outro patamar sobre o que sou, o que faço, o que quero e quem quero. Parece meio arrogante dizer isso, mas realmente o isolamento autoimposto é uma boa terapia, de tantas que já ouvi e li, já que não pratiquei nenhuma de forma consciente. O isolamento me obriga a tudo que envolve o dia e a noite, como dormir quando o sono impede a leitura ou a escrita, levantar quando a luz do dia entra pela janela e seguir uma rotina pouco definida. Se o dia está limpo, penso onde ir e o que encontrar e fotografar para uma crônica nova. Se o dia está fechado e ameaçando chuva, mudo para coisas de dentro de casa, e passo a selecionar fotos, escrever ou ler. Simples assim. Só que não.

O céu da Borda

Céu pintado para um nascer de dia, aqui na Borda.

Ver diariamente um céu que se exibe inteiro de horizonte a horizonte, as vezes vestido de branco, cinza ou preto, as vezes de um azul impecável, de canto a canto, é uma das tantas coisas prazerosas aqui da Borda. Dá para perceber quando o temporal se arma lá do sul e vem cavalgando pelo ar com suas nuvens carregadas, escuras e pesadas; dá para ver quando o tempo vira do leste e traz lá do Oceano Atlântico a umidade que vem sob a forma de nuvens e cerração, pronta para se despejar por aqui; é fácil ver o fenômeno que se arma do oeste, com rajadas de vento e nuvens grossas vindas do continente, trazendo chuva e frio; encanto-me com o fascinante nascer do sol que se desenha todos os dias no horizonte leste, vindo do litoral aquela barra alaranjada que antecede a chegada do sol; hipnotizo-me com o crepúsculo, desenhado num horizonte marcado por coxilhas bordadas de araucárias e o céu se pintando de vários tons de uma cor alaranjada que dá vontade de pegar e guardar; alucino-me com o céu noturno, quando limpo, exibindo seu manto bordado por milhares de pontos estrelares que cintilam e se movem ilusoriamente, de forma lenta, marcando o avanço das horas e o movimento da terra.

Os graxains da Borda

 

Casal de graxaim-do-campo muito curioso, farejando os rastros do novo morador

Sempre apreciei muito ver os animais silvestres livres e vivendo em seus ambientes naturais, caçando, comendo, descansando ou mesmo fugindo de algum predador ou assustados com minha presença. É uma vocação que tenho da minha profissão de biólogo. Gosto de ver e sentir a vida natural, com pouca ou nenhuma interferência humana. Daí resulta, provavelmente, minha aversão por zoológicos. Quando ainda estudava Biologia na PUC, na distante década de 70 do século passado, fui uma vez ao Passo do S, na época pertencente a São Chico e que ainda não era um Parque Estadual. Ali na estrada, numa das tantas curvas antes de chegar ao rio Tainhas, vi o meu primeiro graxaim ao vivo. Ele atravessou a estrada e rapidamente se meteu no campo alto, sumindo como fumaça. Fiquei perplexo, parei o carro e tentei seguir, inutilmente, o pequeno canídeo pelo campo. Ali começava uma grande paixão pelos cães selvagens que cultivo até hoje. Depois fui, junto com o meu amigo e colega Ricardo Bauer, na fazenda de um amigo aqui na serra e lá encontrei os primeiros crâneos de graxaim. Logo aprendi a identificar e diferenciar as duas espécies que ocorrem no Rio Grande do Sul, que se diferenciam por detalhes na morfologia dos ossos e dentes.

Os sons da Borda

A curicaca é uma ave símbolo da região, com seu visual e seus sons característicos

Viver num lugar em que durante muitos dias os únicos sons que eu escuto são os produzidos pela natureza, é uma experiência fascinante me faz prestar muito mais a atenção em detalhes de vozes naturais que eu não percebia, que não sabia que existiam, dando ainda mais valor a uma vivência em ambientes longe de cidades e das coisas que sonam de forma estridente e perturbadora. Já me habituei e consigo identifica muitos dos gritos, rufares, cricris, sibilos, bufadas e berros dos animais; estalos e farfalhar das árvores e arbustos; valsas e sinfonias que vem com o vento quando açoita o campo ou a mata nebular acionando seus múltiplos instrumentos secretos.

A hostil e profícua Borda

Do nada, a cerração surge do fundo do cânion e domina a paisagem, trazendo a chuva.

Viver na borda não é para os fracos. Os moradores daqui, que tem pousadas e fazendas, sabem disso e nenhum deles tem suas casas de moradia permanente perto da borda. Todos, sem exceção, constroem suas casas e galpões a quilômetros de distância das bordas do planalto, justamente num local aonde me encontro. O rigor do clima aqui é sentido como toda a força e severidade, impingindo nos viventes aquela umidade e frio que não se tem em outros lugares. Estou a cinco dias sem ver o sol, açoitado pelo vento, chuvisco e cerração que me tolhe a visão e me molha as lenhas e impede que eu vá ao campo fotografar, já que o equipamento pode sofrer com a umidade excessiva e a visibilidade é pífia, ficando tudo branco, sem definição e profundidade. Até os bichos sentem isso e desaparecem.

Temporal na Borda

Chuvarada despejando na planíecie costeira de Santa Catarina, apreciada daqui da Borda. 

A primeira chuva forte que peguei aqui na Borda, não vou esquecer tão fácil. Era um dia de sol pleno, manhã limpa e com boa visibilidade no cânion. No meio da tarde a coisa começou a mudar e uma montanha de nuvens escuras, vindo do leste, cobriu o azul do céu e parecia uma cordilheira que subia mais alto que o planalto, emparedando toda a borda, escondendo o litoral. Em seguida mais nuvens vieram do oeste e taparam de vez o céu, trazendo vento e uma friagem ligeira. Não tardou para o temporal iniciar lá no litoral e o espetáculo foi sinistro e maravilhoso ao mesmo tempo. Sinistro pela coloração escura, ameaçadora e intimidadora da massa de nuvens e maravilhoso quando iniciou o despejo da água em magotes que eu conseguia ver daqui, do poleiro da Borda. Pensei que era bom assistir uma manga de água caindo longe e os raios riscando o céu cor de chumbo sujo. Fiquei assim olhando e fotografando o evento quando os raios começaram a estourar mais para perto da borda, mais para perto de casa. Foi quando ouvi um estouro ensurdecedor, que me deu um cagaço sem tamanho, parecendo coisas quebrando. Foi rápido como um raio – daí o dito popular. Estourou e o silêncio que se seguiu foi utilizado para eu sentir se tinha e sido atingido o container ou o mato próximo. Felizmente não foi no container e não consegui descobrir aonde que o mandado caiu. Em seguida veio a chuva, forte e constante que molhava o campo com gosto, enchendo banhados, açudes e arroios. O gado, impassível, continuava pastando e andando.

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